quarta-feira, 17 de setembro de 2008

SAGARANA - Guimarães Rosa




"Lá em cima daquela serra,
passa boi, passa boiada,
passa gente ruim e boa,
passa a minha namorada".







SAGA: "canto heróico" , RANA: "à maneira de"
As estórias desembocam sempre numa alegoria, e o desenrolar dos fatos prende-se a um sentido ou "moral", à maneira das fábulas. As epígrafes, que encabeçam cada conto, condensam sugestivamente a narrativa e são tomadas da tradição mineira, dos provérbios e cantigas do sertão.

Minas Gerais,
Sertão,
Bois,
Vaqueiros e jagunços,
Bem e Mal.





Sagarana compõe-se de nove contos:

1- O Burrinho Pedrês: " O Burrinho-gente"

Sete-de-Ouros, burro velho e desacreditado, personifica a cautela, a prudência e a muito mineira noção de que não vale a pena lutar contra a correnteza, se o que se pretende é a travessia.
"Macho" é mulo, mu, muar - o burrinho Sete-de-Ouros, protagonista da história. "Carregado de algodão" simboliza o peso da vida, o trabalho do burrinho, e metaforiza a carga dos homens, o peso do mundo, como fardos de algodão. "Preguntei: p'ra donde ia?" - a forma arcaica do verbo perguntar sugere a indagação permanente dos homens, sábios e filósofos: para quê?, por quê?, de onde?, para onde?. "P'ra rodar o mutirão" alude ao esforço coletivo, ao dever de solidariedade que o burrinho cumprirá na sua hora e na sua vez.

2- A Volta do Marido Pródigo:

A narrativa aproxima-se das novelas picarescas e é um retrato bem-humorado das oscilações interesseiras das convicções políticas do interior.
Lalino, um mulato muito vivo, ajudante numa construção de estrada, não gosta do trabalho. Abandona sua mulher e o meio rural para procurar na capital a felicidade com que sonha: bonitas mulheres à vontade, iguais às que vira em revistas. Depois de algum tempo, cansa-se e fica com saudades: volta. Mas sua mulher, Maria Rita, agora vive com outro. Lalino quer ganhar de volta a consideração do povo e a mulher. Oferece-se uma oportunidade: cooperar como cabo eleitoral do Major, com vistas a ganhar as eleições próximas. Graças a uma série de artimanhas que, no primeiro momento, parecem ser desastrosas para a política do Major, mas que na verdade são intrigas muito hábeis contra o adversário político, Lalino garante o sucesso eleitoral do patrão. Reconcilia-se com a mulher, Maria Rita, que nunca o deixara de amar.

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"Tratado de Bovinologia" =


Os animais são de presença obrigatória em Sagarana, são animais humanizados que alegorizam a própria condição humana.



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3- Sarapalha:

Primo Ribeiro e primo Argemiro, ambos estão com malária, são os únicos habitantes do vau de Sarapalha, lugar dizimado pela epidemia e abandonado pelos demais moradores. Sujeitos a periódicos ataques de febre, cada vez mais sérios, esperam a morte. Saudosamente, evocam a lembrança da bela Luísa, mulher de primo Ribeiro que, ao manifestar-se a malária, tinha-o abandonado por causa de outro. Argemiro, que deseja morrer de consciência tranqüila, confessa ao primo que a sua mudança para a casa de Ribeiro foi motivada pela atração que sentia por Luísa. Ribeiro reage amargamente e se mostra implacável: manda Argemiro embora na hora em que começa a agonia.

A seguinte epígrafe, como em todos os contos de Sagarana, condensa o significado do texto em questão: "Coitado de quem namora!". Argemiro, maleitoso e agonizante, é expulso por ter se apaixonado pela mulher de seu primo. A linguagem do conto acompanha o clima de desgraça e doença, os momentos de tremedeira e desvario dos dois maleitosos, compondo um quadro profundo e sensível da psicologia dos vencidos pela desolação, dos efeitos morais e sociais da maleita.

4- O Duelo:

O capiau Turíbio Todo testemunha a traição de sua mulher com o ex-militar Cassiano Gomes, e faz planos de vingança. Todavia, a bala destinada a matar Cassiano (de costas) não acerta o adúltero, mas sim seu irmão, inocente. Cassiano põe-se a perseguir Turíbio para vingar o assassínio do irmão. Turíbio refugia-se no sertão, acossado por Cassiano. Durante meses trava-se uma luta aferrada, em que cada um é ao mesmo tempo perseguidor e perseguido. Algumas vezes os duelistas se desencontram por um fio. Cassiano cai gravemente doente, mas antes de morrer, ajuda com generosidade um capiau que vive na miséria, chamado Vinte-e-Um. Turíbio, ao saber da morte do adversário, fica contente e põe-se a caminho de volta para sua mulher. Vinte-e-Um, porém, o identifica e mata, cumprindo assim a vingança que prometera a Cassiano.
O conto pode ser lido como uma alegoria da fatalidade, de inexorabilidade do destino humano. Enquanto os homens se perdem na busca de seus objetivos, de um fim, algo superior dispõe o contrário, o imprevisto.


5- Minha Gente:

O narrador-personagem, um moço, está de visita na fazenda do tio, empenhado em ganhar as eleições locais. O moço se apaixona por Maria Irma, sua prima, e lhe faz uma declaração, a qual ela não corresponde. Um dia, ela recebe a visita de Ramiro, noivo de outra moça, segundo ela diz, e o moço fica com ciúmes. Para atrair o amor de Maria Irma, ele finge namorar uma moça da fazenda vizinha. Porém, o plano falha - tendo como efeito secundário, não calculado, a vitória do tio nas eleições - e o moço deixa a fazenda. Na visita seguinte, Maria Irma apresenta-lhe Armanda. É amor à primeira vista; ele se casa com a moça, e Maria Irma, por sua vez, se casa com Ramiro Gouveia, "dos Gouveias de Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom".

Como numa novela, há várias intrigas, episódios e personagens secundários. O conto serve de pretexto para a documentação dos costumes e dos infortúnios da vida da roça. Estrutura-se como uma espécie de paródia, meio sentimental e meio irônica, das estórias de amor com final feliz.

6- São Marcos:

Há duas histórias neste conto. Uma delas, bem menor, é inserida no meio da outra, que conta a desavença entre o narrador e um feiticeiro. Por ter ridicularizado o negro Mangalô. José, o protagonista, torna-se alvo de uma bruxaria. Mangalô constrói um boneco-miniatura do inimigo, e coloca uma venda em seus olhos, o que faz José ficar cego, perdendo-se no meio do mato. Para conseguir achar o caminho de volta, mesmo sem enxergar, ele reza a oração de São Marcos, sacrílega e perigosa.
-Em nome de São Marcos e de São Manços, e do Anjo Mau, seu e meu companheiro...-Ui! Aurísio Manquitola pulou para a beira da estrada, bem para longe de mim, se persignando, e gritou:-Pára, creio-em-Deus-padre" Isso é reza brava...
Com o poder dado pela oração, mesmo cego José encontra a casa de Mangalô, ataca o negro e o obriga a desfazer a feitiçaria.
A outra história, dentro desta, constitui um pequeno episódio no qual José fala de um bambual onde ele e um desconhecido travam um duelo poético; o desconhecido fazendo quadrinhas populares, e ele colocando poemas como nomes de reis babilônicos.

Conta-se, portanto, a história da revelação de um destino que se revela por um conhecimento estético superior do universo, manifesto na imersão sensual/sensorial mágica da natureza. A cegueira de Izé é o pretexto para que o autor faça aflorar outros sentidos, outras potencialidades do ser, que são, a seu modo, a "hora e vez" do narrador, a sua "travessia" no mundo do mistério e do encantamento.

7- Corpo Fechado:

O narrador, médico em Laginha, vilarejo do interior, é convidado por Manuel Fulô para ser padrinho de casamento. Manuel detesta qualquer tipo de trabalho e, enquanto bebem cerveja, divertem-se, ele contando e o doutor ouvindo as histórias e os casos: do rato que tinha em casa enjaulado e que estava, por artimanha sua, criando amizade a um gato rajado; dos valentões do lugar - José Boi, Desidério, Miligido, Dêjo (Adejalma) e Targino, o mais recente, e que teve a insolência de reunir seu bando e comer carne com cachaça em frente da igreja, numa sexta-feira da Paixão; dos ciganos que ele, Manuel Fulô, teria trapaceado na venda de cavalos; de sua rivalidade com Antonico das Pedras-Águas, o feiticeiro. Manuel possui uma mula, Beija-Fulô, e Antonico é dono de uma bela sela mexicana; cada um dos dois gostaria de adquirir o bem do outro.
Aparece então Targino, o valentão do lugar, e anuncia, cinicamente, que vai passar a noite, antes do casamento, com a noiva de Manuel Fulô. Ele fica desesperado; ninguém pode ajudá-lo, pois Targino domina o lugarejo. Aparece então o feiticeiro Antonico e propõe um trato a Manuel Fulô: vai "fechar-lhe o corpo", mas exige em pagamento a mula Beija-Fulô, maior orgulho e paixão de Manuel. O trato é aceito.
De corpo fechado, Manuel Fulô enfrenta o bandido Targino e, para espanto de todos, mata-o com uma faquinha do tamanho de um canivete. O casamento com a das Dor realiza-se sem problemas e de vez em quando consegue emprestada sua antiga mulinha Beija-Fulô, para ostentar, à cavaleiro, sua nova condição de valentão de Laginha.


8- Conversa de Bois:

Os personagens desta história são: o carreiro Agenor Soronho, o menino-guia Tiãozinho, o defunto seu pai e os oito bois do carro.
O carreiro é o bandido: amante da mãe do guia, maltrata o menino, órfão de pai. Os maltratos de Agenor ao menino vão num crescendo, até que os bois intervêm: começam a conversar entre si, contam histórias, comentam a vida e, enfim, percebem a maldade de Agenor e o sofrimento do menino. No final, os bois, humanizados, unem-se psiquicamente ao menino. Ele, então, consegue superar sua fraqueza com a força dos bois. Aproveitando que Agenor havia dormido perto da roda do carro, os bois e o menino dão um arranco forte e matam o carreiro, cuja cabeça é quase cortada.
Retomando, sob outro prisma, o conto inicial "O Burrinho Pedrês", este "Conversa de Bois" é uma alegoria sobre a justiça dos animais e a crueldade dos homens.

9- A Hora e a Vez de Augusto Matraga:

Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira, conhecido como Nhô Augusto e também como Augusto Matraga, é o maior valentão do lugar, briga com todo mundo e maltrata por pura perversidade. Debochado, tira as mulheres e namoradas dos outros. Não se preocupa com sua mulher, Dona Dionóra, nem com sua filha, Mimita, nem com sua fazenda, que começa a se arruinar.
Já em descrédito econômico e político, sobrevém o castigo: sua mulher, Dionóra, foge com Ovídio Moura levando a filha, e seus bate-paus (capangas), mal pagos, põem-se a serviço do seu pior inimigo; o Major Consilva Quim Recadeiro foi quem levou a notícia da defecção dos capangas. Nhô Augusto resolve ter com eles, antes de matar Dionóra e Ovídio, mas no caminho é atacado, numa tocaia, por seus inimigos, que o espancam e o marcam com ferro de gado em brasa. Quase inconsciente, no momento em que vai ser assassinado, reúne as últimas forças e se atira no despenhadeiro do rancho do Barranco. Tomam-no por morto. É, contudo, encontrado por um casal de negros velhos: a mãe Quitéria e o pai Serapião que tratam de Nhô Augusto, que sara, mas fica com seqüelas deformantes.
Começa então uma nova vida, no povoado do Tombador, para onde levou os pretos, seus protetores. Regenera-se e, esperando obter o céu, leva uma vida de trabalho duro, penitência e reza. Arrependido de suas maldades, ajuda a todos, e reza com devoção: quer ir para o céu, "nem que seja a porrete", e sonha com um "Deus valentão".
Passados seis anos, tem notícias de sua ex-família através de Tião da Thereza: a esposa, Dona Dionóra, vive feliz com Ovídio, e vai casar-se com ele; Mimita, sua filha, foi enganada por um cometa (espécie de caixeiro viajante) e caiu na perdição. Matraga sente saudades, sofre, mas se resigna.
Certo dia, aparece o Joãozinho Bem-Bem, jagunço de larga fama, acompanhado de seus capangas: Flosino Capeta, Tim Tatu-tá-te-vendo, Zeferino, Juruminho e Epifânio. Matraga hospeda-os com grande dedicação e admira as armas e o bando de Joãozinho Bem-Bem. Mas se recusa a acompanhar o bando, mesmo convidado pelo chefe e não aceita qualquer ajuda dos jagunços. Quer mesmo ir para o céu.
Totalmente recuperado, Matraga despede-se dos velhinhos e parte, sem destino, num jumento. Chega ao Arraial ao Rala-Coco, onde reencontra Joãozinho Bem-Bem e seu bando, prestes a executar uma cruel vingança contra a família de um assassino que fugira. Augusto Matraga desperta para a sua hora e vez: intervém em nome da justiça, opõe-se ao chefe do bando, liqüida diversos capangas, tomado de verdadeiro furor. Bate-se em duelo singular com Joãozinho Bem-Bem. Ambos morrem - Joãozinho primeiro. Nessa hora, Augusto Matraga é identificado por seu antigos conhecidos.

Narrado em terceira pessoa, o conto enfatiza duas constantes da vida do sertão: a violência e o misticismo, na interminável luta do bem e do mal.



GUIMARÃES ROSA






"Como escritor, não posso seguir a receita de Hollywood, segundo a qual é preciso sempre orientar-se pelo limite mais baixo do entendimento. Portanto, torno a repetir: não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade, da solidão (...). No sertão, o homem é o eu que ainda não encontrou um tu; por ali os anjos e o diabo ainda manuseiam a língua".

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